quinta-feira, 25 de novembro de 2010

SALVE O ALMIRANTE NEGRO!



O Mestre Sala dos Mares
(João Bosco / Aldir Blanc)


Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo marinheiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como o almirante negro
Tinha a dignidade de um mestre sala
E ao navegar pelo mar com seu bloco de fragatas
Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por batalhões de mulatas
Rubras cascatas jorravam das costas
dos negros pelas pontas das chibatas
Inundando o coração de toda tripulação
Que a exemplo do marinheiro gritava então
Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais
Salve o almirante negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais
Mas faz muito tempo
O dia da lei e o dia da consciência
imagem
Rodrigo Oliveira Fonseca*
Há um embate instaurado em todo o país, em cada escola, em cada Câmara Municipal, entre o 13 de Maio e o 20 de Novembro. Não entre as datas, certamente, mas entre duas formas de marcar a presença histórica dos negros na formação social brasileira. E como todo embate verdadeiramente importante, ele não necessariamente é verbalizado, movimentando-se subterraneamente, como a toupeira cega que de repente irrompe na superfície e a transforma.
Lutando para ocupar o lugar da magnanimidade da pena da princesa “que assinou a lei divina”, temos os exemplos de luta de Zumbi no século XVII, de João Cândido no início do XX, e outros tantos gestos e vidas de anônimos ou semi-anônimos que pisaram firme sobre o solo de suas próprias con(tra)dições e fizeram a história andar.
Cem anos atrás, no dia 22 de novembro de 1910, tinha início no Rio de Janeiro o levante popular de marinheiros conhecido como Revolta da Chibata. Influenciados pela muito bem organizada revolta dos marinheiros russos do Encouraçado Potemkim (1905), João Cândido e outros dois mil e tantos marinheiros puseram em ação o seu plano. A antiga capital do Brasil ficou uma semana sob a mira dos canhões da Marinha de Guerra estacionada na Baía de Guanabara. As denuncias sobre as condições aviltantes de trabalho daqueles marujos – em sua maioria negros – atravessaram as fronteiras do país. Dentre suas reivindicações, uma foi alcançada, o fim dos castigos sistemáticos (“chibatadas”) que sofriam, numa reminiscência da escravidão oficialmente abolida 22 anos antes.
O governo prometeu anistiá-los. Logo depois foram traídos.
Há mais de 300 anos, tinha fim, pelas mãos de tropas bandeirantes mercenárias, o Quilombo dos Palmares, que resistiu de 1630 a 1695. Zumbi, seu mais famoso líder, que governou de 1678 até o fim de Palmares, foi assassinado a 20 de novembro, entrando para a história como representante de um outro país possível, mais africano (mas não apenas) e menos discriminatório (mas não livre da escravidão) – de todo o modo um país nascido de uma guerra popular de resistência e não de maquinações elitistas e conservadoras.
Zumbi não negociou com seus algozes, mas morreu numa emboscada através da corrupção de um dos seus lugares-tenentes, que havia sido capturado e comprado pela promessa de liberdade.
No dia 13 de maio de 1888, uma daquelas maquinações elitistas e conservadoras se manifestou na história nacional. Uma lei (“áurea”) abolia por decreto a instituição da propriedade de seres viventes trabalhadores – mas o fazia para melhor defender a ordem pública dos proprietários, como podemos inferir da intervenção do senador barão de Cotegipe, um dia antes da aprovação definitiva da lei.
(...) a extinção da escravidão que ora vem neste projeto não é mais que o reconhecimento de um fato já existente. Tem a grande razão, que reconheço de acabar com esta anarquia, não havendo mais pretextos para tais movimentos, para ataques contra a propriedade e contra a ordem pública.
Vamos assim como as leis tendem a ser uma forma de evitar o pior para as classes dominantes. E mais especificamente, a ideologia jurídica do capitalismo, pautada numa lógica de indiferenciação dos sujeitos (“todos são iguais perante a lei”) e de intercambialidade (“todo aquele que...”), abstrai o mundo real, esconde as razões econômicas e as particularidades históricas que nos movem.
Não foi diferente com a “lei áurea”, que produziu um novo padrão de miserabilidade nacional, ao não ser acompanhada de reforma agrária, com o direito de propriedade da terra aos escravizados que nela trabalhavam. Some-se a isso a intensificação das políticas imigratórias, para a aquisição nacional de trabalhadores europeus “já educados” nas relações assalariadas de subordinação aos detentores dos meios de produção.
Uma geração depois, esses trabalhadores já educados para as relações assalariadas mas também para a luta de classes, em Manaus, publicaram num de seus jornais, A Lúta Social, em 1º de junho de 1914, a seguinte constatação sobre o 13 de Maio, que é uma verdadeira aula:
Eis que nesta data, em 1888, o Brazil se coloca ao lado dos paizes civilizados. Como não!? Não nivelou a lei naquele dia, sancionando a libertação dos escravos, as condições sociais de seres umanos, que apenas a influencia natural de sua orijem os diferenciava dos seus “donos”?
(...) É um idéal que se lança ao vento da propaganda. Sim; é uma idéia que se propaga e que só frutificará com o raciocinio das vindouras jerações. Até ôje nada de lucrativo, nada de benefico para as lejiões dos dezerdados da sorte e da natureza.
Tudo o que lemos, não passava de uma ezurtação [exortação] patriotica. A lei, era a lei escrita, sempre improfícua.
Acabava a escravidão material, ficava a escravidão moral. Era um metamorfozeamento.
O chicote senhoril não impunha mais a obrigação do trabalho escravizador. A fome, porém,submetia o miseravel salariado a um serviço extenuante, de que não percebia o bastante, para uma alimentação reconfortadora. Assim se perpetua a escravidão.
Se nós acreditassemos em beneficios lejisladores... Quantas desilzões! Mas nós que aprendemos nos ensinamentos esperimentais da istória, sabemos quanto valem tais reliquias.Elas fazem-se apenas para entravar a marcha do progresso, para obstruir o rapido desenvolvimento duma idéia.A lei vem canalizar uma aspiração que deve ser livre; vem regular uma vontade que não deve ter peias. Ela vem destruir a evolução porque desvirtúa o seu significado.
(...) a ação legislativa, é tão pernicioza e nefasta, que não permite que a umanidade avolume o seu ideal imancipador. Vejamos o que sucede nas reivindicações operarias.
E emquanto que a imprensa rezalta [ressalta] a magnanimidade das leis, nós observamos, numa terra tão fertil como esta, que sêres umanos, doentios e esqueleticos, morrem á mingua. Quantas creaturas, sem um palmo de terra para cultivar, nem uma casinha para se abrigar das intempéries e quanta enormidade de terreno dezerto!
- Sois livre – dizem-nos. No emtanto não temos casa para viver, nem terra para produzir alimentos. A civilização aparece-nos assim com efeitos negativos.(ortografia e grifos originais do próprio jornal, que pode ser visto, em fac-símile, na publicação organizada pelos professores Maria Luiza Ugarte Pinheiro e Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro: Imprensa Operária do Amazonas. EDUA, 2004).
Se, como disseram estes operários há quase cem anos, as leis vêm para obstruir o rápido desenvolvimento de uma ideia, para canalizar aspirações, regular vontades e desvirtuar significados, há de se ver também que tal consciência pode alimentar uma outra ideologia jurídica, como as que movem hoje a luta pela reparação indenizatória à família de João Candido e a luta por reparação às mais de 5mil comunidades quilombolas espalhadas pelo Brasil (o direito à titulação e à sustentabilidade das terras em que vivem).
Isso é promover a igualdade reconhecendo a diferença e combatendo as desigualdade. Essa outra ideologia jurídica certamente não cabe na ordem atual, que se sustenta na aparência da igualdade de direitos e deveres, ao mesmo tempo em que reproduz os mais profundos abismos e injustiças. Mas, afinal, quem disse que a nossa consciência pode ser obstruída ou regulada pelo que cabe na ordem? Ela não cabe em um dia nem em um editorial, é para gerações e gerações.
* Rodrigo Oliveira Fonseca é jornalista, mestre em história social da cultura e membro do Comitê Central do PCB.

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